Uma ida à lavanderia com meus artistas favoritos

Hélder Nunes
4 min readOct 9, 2020

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É sexta-feira, são 17h e eu desperto. Ao ver o relógio, surpreendo-me: como pude acordar quase ao anoitecer, quando lembro que hoje peguei no sono muito antes do amanhecer? E logo me sinto estúpido ao perceber que fui vítima mais uma vez do sono da tarde que sempre dura mais do que devia. Em uma risada, levanto-me e penso nos afazeres noturnos. Tenho que levar roupas na lavanderia, e é isso que imediatamente faço. Saí de casa vestindo a primeira roupa confortável que encontrei, uma máscara negra, um casaco e levo um livro que estou pra terminar há mais tempo do que consigo recordar.

Caminhar à noite em uma cidade grande é algo que gosto muito. O ato de caminhar, tão raro (para mim) em tempos de confinamento, é acompanhado pelo medo de ser infectado por um vírus mortal que já alcançou 2% da população do meu país no momento. Mas não consigo disfarçar a alegria que sinto por não estar mais cercado por quatro paredes, condição que venho passando pela maior parte do tempo. Ver o céu aberto e sentir o clima nas ruas são coisas que faço muito raramente desde que o COVID-19 se alastrou pelo mundo.

Depois de chegar na lavanderia e colocar minhas roupas para lavar, vou tomar os minutos que tenho enquanto a máquina de lavar chacoalha com minhas roupas para ler fora da lavanderia, mas neste momento uma melodia que reconheço me chama a atenção.

Ela vem de uma caixa de som que não consigo ver, e está com uma dupla que conversa tranquilamente no posto de gasolina próximo enquanto bebe cerveja. A música me é completamente familiar, mas não sei seu nome. Reconheço-a como parte de uma playlist muito boa de meu pai. Os primeiros versos são “Se eu demoro / Mas aqui, eu vou morrer / Isso é bom / Mas eu não vivo sem você”. Mais tarde, uma rápida visita ao Google me revelou que ali ouvíamos Agnaldo Timóteo interpretar magistralmente uma composição de Roberto Carlos, chamada Meu Grito.

Piscando os olhos, lembro-me do que vim fazer ali: adiantar minha leitura atrasada enquanto minhas roupas são lavadas, e então meu olhar volta às páginas do livro. Na autobiografia de Caetano Veloso, pela qual eu vinha desenvolvendo sentimentos doce-amargos, a terceira parte se chama “Narciso em Férias”, onde o autor irá descrever sua experiência como preso político. Ao ler o título Narciso em Férias, me vem em mente que ele acabou de lançar um documentário com este nome, onde fez um cover de Hey Jude para ajudar no marketing. Um cover, penso eu, um pouco abaixo da média dos muitos covers que Caetano já fez. Preferi sua interpretação de Jorge Ben em “Amante Amado” ou de Chico Buarque em “Samba e amor”.

O que me faz sair do meu julgamento musical é o início de uma nova música da playlist dos que bebiam, playlist que vem caindo cada vez mais no meu gosto. Se inicia agora “Lady Laura”, canção conhecidíssima de Roberto Carlos. Não é a minha favorita do Rei, mas não deixo de gostar dela e cantarolo um pouquinho. Concentrando-se na dupla, analiso os dois: sem máscaras e aparentemente idosos, parecem inconscientes de que um vírus mortal assola o planeta. Sei que julgá-los seria uma perda de tempo — estão ali por motivos que vão muito além da responsabilidade individual de cada cidadão pela saúde de seu país.

Lady Laura, me leve pra casa, Lady Laura! Me conte uma história, Lady Laura. E agora me vem em mente uma lembrança do meu confuso Ensino Médio, onde alguns alunos cantavam essa música para minha professora de biologia, apenas trocando o título da música pelo nome dela.

E a recordação de meus professores do Ensino Médio me entristece: sinto muita afeição e sou muito agradecido pela grande maioria deles, mas temo que eles não compartilhem do mesmo sentimento por mim, já que eu era um aluno não tão bom e era uma pessoa infantil. Adolescentes são inevitavelmente infantis em diversos quesitos, e eu não fui uma exceção à essa regra.

Pensar sobre arrependimentos nunca levou e nunca vai levar nada a ninguém, e então após ler não mais do que dez páginas, levanto-me para pegar minhas roupas que a essa hora já tinham sido lavadas. Na lavanderia, vejo um homem com uma camisa que contém uma piada clichê dos Beatles. Se não me falha a memória, em sua roupa lia-se “Os Beatos”. Sendo o Fab Four a banda que mais me marcou, não me contenho: “Linda a sua camisa”, comento ao vê-lo. Ele me olha, confuso, e apressadamente diz “ah, obrigado”. Mesmo por trás da máscara, consigo ver que ele sorriu, brevemente surpreso. Ler as expressões faciais de pessoas mascaradas não é uma das habilidades que eu pretendia desenvolver em 2020.

Para terminar minhas atividades, olho mais uma vez para a dupla que bebe ouvindo brega. Agora eles ouvem “Porque Brigamos” de Diana. Essa música é especial para mim porque ela me acompanhou na única vez em que chorei por amor. O meu olhar encontra o de um homem da dupla. Suspeito que ele tenha me visto cantarolando Lady Laura. Queria muito poder cumprimentá-lo, conversar com ele um pouco e pedir o link de sua playlist, ele aparenta ser uma pessoa legal. Mas essa é uma das minhas infinitas vontades que não pode ser concedida por causa do coronavírus. Então, colocando o Narciso em Férias no bolso, tomei meu caminho para casa, andando sem olhar pra trás.

É óbvio que eu estou mentindo. Era noite em Campina Grande. Ninguém anda pela rua sem olhar pra trás.

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