As coisas não são tão simples

Hélder Nunes
4 min readDec 4, 2020

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Mamãe coloca seu cartão de crédito (não sei se você sabe o que é, mas é tipo um cartão de metal que os adultos usam pra comprar coisas) na maquininha do funcionário, e depois de alguns bipes, podemos sair do supermercado. Finalmente. Não aguentava mais aquele supermercado e aquelas compras. Só quero ir pra casa onde posso ter paz.
— Mãe, nós vamos pra casa agora? — pergunto olhando pra ela, ansioso. Ela parece sempre demorar um ou dois segundos pra me responder quando está ocupada, e eu não entendo muito bem o porquê.
— Sim, filho. Relaxe. Você já perguntou isso bem umas quinze vezes hoje.
A fala dela me deixa pensativo. Acho perfeitamente normal querer saber quando vou pra casa. Mas tudo bem.
— Certo. É que, você sabe, hoje tem jogo da copa do mundo no FIFA e tal.
— Alan, você sabe que seu jogo fica salvo, né? Se você jogar hoje ou semana que vem, ou século que vem, o seu time ainda vai estar lá. No mesmo lugar. Os mesmos jogadores, os mesmo comandos, etcétera e tal.
Acho que ela não entende que eu estou jogando com um calendário certo para terminar no dia que a copa do mundo da vida real terminar também. Os adultos simplesmente não entendem algumas coisas, mas eu também não vou ficar perdendo meu tempo explicando.
Terminada a nossa parada no supermercado, chegamos ao carro para irmos pra casa.
— Escolhe aí alguma música — ela diz, me entregando o celular enquanto liga o carro.
— Não sei, a gente tá sempre ouvindo uma coisa diferente, eu nem sei direito do que eu gosto…
— É normal demorar um pouco até desenvolver um gosto musical. Mas você não disse que tinha gostado de Ray Charles semana passada?
— Quem é esse? — pergunto, confuso. O nome me é completamente estranho.
Mamãe apertou algum botão no celular dela e disse “tocar I Can’t Stop Loving You”.
O carro aparentemente obedeceu a ela, porque em seguida ouvimos acordes de piano e uma voz masculina muito bonita.
— Esse cara aí. É um pianista que compunha, cantava e tocava mesmo sendo cego, morreu faz bem uns vinte anos.
— Ah, sim, é, eu lembro. Legal de verdade. Isso é inglês, né?
— Sim, filho. Inclusive acho que você deveria aprender pra ontem. Inglês é muito importante.
— Como assim “pra ontem”, mãe? Ontem já passou.

— “Pra ontem” é uma expressão, filho. Quer dizer que é algo urgente, algo que já devia ter sido feito.

— Ah, sim. É que eu gosto mais de espanhol. É bem mais fácil e mais bonito.
Mamãe ri. Não entendo. Não lembro de ter contado nenhuma piada. Os adultos são definitivamente incompreensíveis, pois lembro que quando contei pra ela uma piada genial semana passada ela nem piscou.
— Filho, de fato espanhol é muy bonito e muy fácil, e também acho ótimo que você goste dele. É só que inglês é o idioma mais falado no mundo, e é crucial que você o aprenda.
— Mamãe, o que é crucial?
— É algo muito importante, vital. Necessário.
— Entendi.

Fiquei um tempo pensando na palavra nova que aprendi. Crucial. Me lembra a palavra “cruel” que encontrei pela primeira vez em algum dos poucos livros que li. Meu tio me deu a coleção de Harry Potter de presente, mas não passei do segundo livro. Passo muito mais tempo brincando e jogando do que lendo. E os jogos me lembram da conclusão que tomei hoje:

— Acho que vou fazer Engenharia da Computação quando eu entrar na universidade.

Mamãe fica tensa no mesmo instante.

— O que foi? — pergunto, já me tensionando também — tem algum problema em eu ser programador? Quero aprender a fazer jogos!

— Não, filho, nenhum! — ela imediatamente ri, liberando a tensão e achando graça no que falei — programação é uma área muito bonita, filho. Só não quero que você pense muito no que você quer cursar, ou nesse tipo de coisa. Você ainda é muito criança pra estar pensando nisso. Queria que você passasse seu tempo descobrindo o que você gosta e no que você é bom, e não tentando destrinchar seu futuro. Isso é coisa de gente grande.

Não sei o que é destrinchar. Mas nem tenho tempo de perguntar o que é isso, porque já estou intrigado demais com outro assunto:

— Mãe, eu não sou criança, ok!? Na escola eu aprendi que na minha idade eu já sou pré-adolescente.

Ela tira sua atenção do trânsito para me encarar por alguns segundos, vestindo uma expressão absolutamente ilegível. Não consigo saber se ela está incrédula, se ela está com raiva de mim por algum motivo, se ela concorda comigo…

— Certo, filho, pré-adolescente ou criança, tanto faz. Você entendeu o que eu disse? — ela diz, voltando sua atenção para o trânsito.

— Entendi. — minto rapidamente. Descobri há pouco tempo que mentir é muito fácil, e não é nada muito errado mentir, afinal é algo que todo mundo faz. Também não perguntei o que era “distrinchar”.
Passamos um pouquinho de tempo em silêncio. Somos parados por um semáforo, e ela fala de novo com a tal assistente da Google, tocando alguma banda argentina.
— Eu gosto dessa música!
— Onde você ouviu isso antes? — pergunta ela, confusa.
— Nunca ouvi antes. É só que está em espanhol. Acho descolado.
Nós rimos juntos. Dessa vez ela entendeu minha piada.
— Sim, filho, como eu disse quando entramos no carro: você tem que aprender inglês. Inclusive, eu e seu pai andamos conversando muito sobre viajar pra Inglaterra, e você sabe que lá eles só falam em inglês.
— Mamãe, então por quê a gente não viaja pra Espanha ao invés da Inglaterra? Já que eu só quero falar espanhol, mesmo. Ia ser mais fácil pra mim, e pra vocês também, já que espanhol é mais fácil que inglês.
Ela ri, me entregando um olhar terno e brincando com meu cabelo lentamente com a mão direita.
— Filho, as coisas não são tão simples…

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